Propinas em crise

A implementação do regime de propinas no sistema de Ensino Superior Público, na década de 90, foi alvo de forte contestação do movimento estudantil. Alegava-se, na altura, que a medida limitava o acesso universal ao sistema de ensino, promovia uma discriminação no acesso com base em critérios económicos e que teria como consequência última a progressiva elitização do sistema de Ensino Superior. Denunciava-se também a desresponsabilização progressiva do Estado no cumprimento dos seus deveres fundamentais, através da privatização do sistema de ensino. Apontava-se ainda o carácter inconstitucional da medida, já que a lei fundamental do Estado assume que é função deste estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino.

A maioria absoluta aprovou a lei apesar da oposição de toda a comunidade académica, bem como da totalidade da oposição, ficando a ressalva de que as propinas teriam como objectivo melhorar a qualidade do ensino, funcionando como complemento ao financiamento público.

Quinze anos volvidos, e fazendo uma análise retrospectiva da evolução do sistema de Ensino Superior , verifica-se que os receios dos estudantes tinham fundamento. A lei das propinas foi apenas um passo inicial num processo de desinvestimento público no sistema de Ensino Superior e de transferência dos encargos do Estado para os estudantes, bem como de delegação de responsabilidades na iniciativa privada.

No que toca ao montante pago pelos estudantes, o seu valor passou de 6,5€ em 1991/92 para 220€ em 1992/93 e no ano lectivo 2008/09 o valor era de 972,14€. Este valor corresponde a um aumento de 14956% do montante pago pelos estudantes para frequentar o ensino superior. Não se verificou, no entanto, um reforço das despesas de apoio a estudantes economicamente desfavorecidos capaz de acompanhar este aumento dos encargos com a educação. Pelo contrário, o investimento público no Ensino Superior foi diminuindo progressivamente o que conduziu a situações dramáticas em algumas instituições.


Ainda este ano a U.L. atingiu uma situação crítica, bem expressa na deliberação do Senado que denunciava “práticas desresponsabilizantes de sub-orçamentação ou, pior ainda, obrigando-as a medidas de ‘comercialização’ do ensino e de desqualificação do seu corpo docente”

Por outro lado, os estudantes do ensino superior portugueses são os que maior esforço financeiro fazem para frequentar o ensino superior – 11% do PIB per capita – em toda a Europa. No entanto, o investimento público no Ensino Superior corresponde a apenas 1% do PIB, metade do valor proposto pela Comissão Europeia em Abril.

A crise económica e financeira mundial agravou consideravelmente a situação de muitos estudantes que ainda frequentavam o Ensino Superior com sérias dificuldades. Nos últimos meses assistiu-se a um aumento das desistências de estudantes por motivos económicos e a cada vez maiores atrasos no pagamento das propinas, sendo que uma parte dos estudantes com propinas em atraso poderá ser forçado a desistir no final do ano lectivo. Só poderemos conhecer toda a dimensão do problema no início do próximo ano lectivo. Por outro lado, registou-se também um aumento considerável de pedidos de bolsa de estudo ou de revisão dos seus valores.

A Universidade torna-se novamente, e cada vez mais, um espaço de exclusão onde o acesso é determinado por factores económicos.

Impõe-se, no imediato, a implementação de medidas urgentes de apoio a todos os estudantes que corram o risco de ser forçados a desistir ou que enfrentem sérias dificuldades para prosseguir os estudos. A reserva do Orçamento de Estado para recuperação institucional e reforços (20 milhões de €) deverá ser totalmente utilizada e deveria ainda ser criado um fundo de emergência para reforçar os serviços de Acção Social das diversas instituições.

Na Universidade de Lisboa medidas como a implementação efectiva do Regulamento de Bolsas de Apoio Extraordinário, a revisão do valor das propinas pago por estudantes cujo agregado familiar tenha dois ou mais filhos a estudar no Ensino Superior, o prolongamento dos horários das cantinas, a implementação dos projectos de novas residências universitárias e a promoção de sistemas de empréstimo de bibliografia e materiais de esutdo entre colegas, poderão contribuir para a melhoria da situação de uma parte dos estudantes. No entanto, se no curto prazo estas medidas são fundamentais, a médio/longo prazo são claramente insuficientes.

A crise veio apenas acelerar o processo que se iniciou na década de 90, revelando as suas consequências em toda a extensão e de forma mais abrupta.

Os estudantes não devem por isso limitar-se a procurar resolver os problemas imediatos, devem também denunciar a sua raiz e retomar a crítica a um modelo que provou ir contra os princípios de universalidade e de igualdade do direito à educação. Mais ainda quando esses princípios estão consagrados na lei: “Princípio da não exclusão, entendido como o direito que assiste a cada estudante de não ser excluído, por carências económicas, do acesso e da frequência do ensino superior, para o que o Estado deverá assegurar um adequado e justo sistema de acção social escolar”, da Lei de Bases do Financiamento do Ensino Superior, ou na própria Constituição da República que garante a igualdade de oportunidades no acesso ao Ensino Superior.

A exigência fundamental deve ser, por isso, a de um sistema de Ensino Superior democrático, ao serviço de toda a sociedade e de acesso universal, o que claramente só pode ser assegurado se este for público e tendencialmente gratuito. A defesa do Ensino Superior público deve passar pela exigência de um verdadeiro investimento público no sistema de Ensino Superior, cuja medida seja a das necessidades das instituições e dos estudantes; pelo estabelecimento de um regime de Acção Social justo e eficaz; e por uma progressiva redução das propinas até à sua eliminação. A defesa do Ensino Superior Público passa também pela solidariedade e pela cooperação com estudantes de outras instituições, ao contrário da lógica corporativa de defesa dos interesses particulares que tem prevalecido no seio do movimento estudantil.

Se é certo que a crise agravou os problemas dos estudantes do Ensino Superior, também é certo que lhes abriu a oportunidade de questionar o modelo que lhes foi imposto e de começar a construir um Ensino Superior mais justo, mais igualitário e mais democrático.

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